sábado, 4 de setembro de 2010

Para nunca esquecer Ruanda


O genocídio praticado em Ruanda é o evento mais trágico da segunda metade do século passado; todavia, dezesseis anos depois, ele está quase totalmente esquecido. A hecatombe de 1994 deve ser lembrada, estudada, analisada, discutida, porque contém um grande número de lições que nos ajudam a entender melhor nosso tempo. Os massacres de 1994 não são frutos de uma explosão de loucura coletiva, mas a máxima expressão de um ódio muito antigo.

A Ruanda pré-colonial certamente não era um país onde todos gozassem de suficiente dignidade e oportunidade; havia divisões sociais, tribais; as monarquias distribuíam privilégios e riqueza de maneira articulada. Mas os colonizadores – inicialmente alemães e, depois, belgas – tiveram grande responsabilidade na exasperada divisão do país entre dois grupos rivais, os hutus e os tutsis. Em 1932, quando os belgas criaram o documento de identidade étnica, chegou-se a uma situação sem retorno: os twás, além dos hutus e os tutsis, viram-se oficialmente divididos.


Menina ruandesa com as pernas amputadas pela explosão de uma mina


Os colonizadores atribuíram privilégios e cargos de comando apenas a uma restrita elite dos
tutsis, despertando o ódio crescente nos hutus. Depois de deixar o país, os colonizadores assistiram à tomada do poder pela maioria hutu, até então oprimida, sem a preocupação de refrear as tensões causadas por sua política criminosa.
Durante os anos setenta, quando Juvenal Habyarimana chegou ao poder, um grande número de países ocidentais concedeu ao país enorme crédito político, mas principalmente econômico. O auxílio externo equivalia a 22% do Produto Interno Bruto, com rasgados elogios do Banco Mundial, apesar de Habyarimana reprimir de modo sistemático e duro os dissidentes.

Antecedentes da guerra civil
Cena de destruição e cadáveres espalhados



O envolvimento de potências estrangeiras, e sua conseqüente responsabilidade, foram crescendo cada vez mais. A aceleração na direção do genocídio agravou-se em 1990. A Frente Patriótica Ruandesa, formação político-militar dos tutsis egressos do país após o fim do colonialismo, atravessou a fronteira da Uganda e iniciou a guerra civil. A França se alinhou ao governo de Habyarimana mas, para alimentar o conflito, chegaram também armas egípcias, britânicas, italianas, sul-africanas, israelenses, do Zaire e de outros países.
Ruanda, pequeno país, famoso por sua miséria, tornou-se o terceiro país africano na importação de armas. Entre janeiro de 1993 e março de 1994, graças sobretudo a financiamentos franceses, adquiriu da China 581.000 machetes (sabre de artilheiro, com dois gumes), armas impróprias, mas de preço acessível. Nenhuma potência ocidental ou organismo internacional monitorou seu comércio, nem impôs proibições; assim é que, nos mercados de Ruanda, é mais fácil encontrar granadas do que frutas ou verduras.


Acordos de papel


A ONU, a OUA (Organização para a Unidade Africana) e alguns governos resolveram sentar-se com Habyarimana e a Frente Patriótica para discutir um documento elaborado em Arusha, na Tanzânia. Os representantes de cada parte assinaram um articulado Tratado de Paz, que permaneceu apenas no papel. Por outro lado, nenhuma das organizações envolvidas, nem mesmo a diplomacia dos países ocidentais, preocupou-se em verificar o que estava acontecendo de fato. E os dois contendores continuaram a se armar até os dentes.

Em Ruanda, a violência contra os tutsis foi aumentando semana a semana. Algumas partes do Tratado são de fato contraproducentes e nada fazem, senão incitar mais ainda os extremismos. Controlada pelo clã Akazu, ligado à mulher de Habyarimana, a imprensa hostilizou duramente os acordos e gerou um veículo que se tornou tragicamente famoso pelo seu incitamento ao ódio durante o genocídio: a Rádio Mil Colinas. Não obstante este crescimento, a missão dos capacetes azuis (da ONU), enviada a Ruanda para ajudar na implementação dos acordos, foi particularmente frágil.

Sinais ignorados


O general Romeu Dallaire comandava as tropas da ONU. O objetivo era manter a paz, mas, no “país das mil colinas” não havia paz. No dia anterior à sua chegada em Ruanda, o domínio militar tutsi ameaçou o primeiro presidente democraticamente eleito na história do vizinho Burundi, o hutu Ndadaye. Houve confrontos e cinqüenta mil pessoas, na maioria hutu, perderam a vida. Outros fugiram para a Ruanda meridional. Não era o primeiro massacre de hutus causado pelos tutsis do Burundi, e nem o pior, pois, em 1972 foram massacrados pelo menos 200.000, seguido de um presumido golpe de Estado.

A violência, provocada pelos militares tutsis do Burundi, alimentou cada vez mais o ódio dos hutus contra os tutsis de Ruanda. Dallaire entendeu logo o que estava acontecendo: havia urgente necessidade de uma força multinacional, preparada para refazer a ordem, interromper a chegada de armas, garantir a segurança dos civis e dos líderes políticos. Desde dezembro de 1993 até abril de 1994, Dallaire implorou-a outras vezes a seus líderes, à ONU e a quem encontrasse. Não foi ouvido.

Em 6 de abril de 1994, o presidente Habyarimana foi morto, não se sabe por quem. A guarda presidencial, parte do exército e um número enorme de esquadrões da morte, perseguiram os tutsis, conforme um plano bem elaborado. As vítimas do extermínio, segundo estimativas cautelosas, foram quinhentas mil; segundo os maiores críticos, um milhão. Dallaire reuniu outros cinqüenta mil homens, convencido que seriam suficientes para acabar com os massacres.

Mas, na manhã do dia 7 de abril, dez capacetes azuis sob seu comando foram mortos e o Conselho de Segurança (da ONU) decidiu pelo retorno da maioria dos soldados da missão. Dallaire manteve quatrocentos capacetes azuis, quase todos da Tunísia e de Gana. Eles salvaram 25.000 pessoas, mas o genocídio acabou somente quando a Frente Patriótica venceu a guerra civil.

Os soldados tutsis da Frente, bem preparados e disciplinados, não economizaram represálias, ataques a órgãos civis, como hospitais e igrejas. Sua operação não tinha as intenções genocidas dos extremistas hutus, mas os crimes de guerra, pelos quais foram responsáveis, precisam ser duramente condenados.

A retirada

As potências ocidentais, ao abandonarem Ruanda a si mesma, não se cansam de justificar seu comportamento. As mensagens de Dallaire à ONU, levadas ao futuro secretário Kofi Annan, não citaram seus próprios erros, mas afirmavam ter feito todo o possível. O presidente dos Estados Unidos na época, Bill Clinton, que exigira uma intervenção internacional para evitar os massacres, desculpou-se afirmando que não sabia o que se sucedia em Ruanda.

A Bélgica pediu perdão, mas responsabilizou os próprios Capacetes Azuis por tudo. Também acusou o Vaticano e os líderes de outras religiões.

É verdade que muitos líderes da hierarquia religiosa, tanto católica, como anglicana, estavam comprometidos com o regime extremista dos hutus. Porém, naqueles meses, foram mortos 103 padres, 76 freiras e 53 irmãos consagrados.

Os únicos que não pediram desculpas foram o governo e o parlamento francês, que também haviam sustentado os extremistas hutus, até depois da morte de Habyarimana. Comentando uma pesquisa elaborada em 1998, o parlamento de Paris admite algumas falhas, mas insiste que “ninguém fez tanto quanto a França para estancar a violência em Ruanda”.

A atuação da ONU


Sobre as mil colinas de Ruanda morreu a esperança que, com o fim da bipolaridade EUA/URSS, a ONU poderia mostrar ao mundo um futuro de paz. Nos primeiros anos da década de 90, as Nações Unidas se empenharam em dezenas de campanhas pela paz. Foi a melhor demonstração da capacidade do Palácio de Vidro de ser incisivo e eficaz para prevenir situações de crise. Mas não em Ruanda, onde todo otimismo foi sepultado sob montanhas de cadáveres.

Faliram os órgãos responsáveis pelas campanhas, o secretariado geral, o Conselho de Segurança. A Assembléia Geral e a Comissão dos Direitos Humanos nada fizeram. A ONU foi um organismo inútil. A ONU tinha os meios para compreender o que acontecia e sabia como interferir. Poderia prevenir os massacres, se tivesse ouvido os pressentimentos de Dallaire. Poderia interromper ou, ao menos, limitar a violência entre abril e julho de 94, se tivesse enviado reforços que o general pedia com tanta insistência.

Poderia afrontar com eficácia as questões dos refugiados antes que acontecesse “a guerra mundial africana”, se interviesse a tempo, e se utilizasse melhor os recursos econômicos da Instituição para os casos de emergência. O fracasso da ONU em Ruanda foi culpa da irresponsabilidade pessoal de funcionários e de dirigentes. Será inútil pedir sua reforma, sem discutir – abertamente e com transparência –, os comportamentos do seu pessoal.

O genocídio ruandês é um dos piores eventos na história da humanidade. Entre os responsáveis, alguns começam a pagar pelos seus atos. Mas, entre os que podiam interferir para bloqueá-lo e não o fizeram, ninguém se preocupa. Hoje está difícil conseguir a estabilidade em Ruanda. O país está nas mãos firmes de Paul Kagame, desde as vitoriosas eleições do último verão. Ele é o general tutsi que, em 1994, levou a Frente Patriótica à vitória sobre a guerra civil.

Seu governo obteve importantes resultados econômicos e sociais, mas responde por graves violações de direitos humanos, de limitações à liberdade individual. Está ainda envolvido, não tanto como no passado, na guerra que levou à morte outros três milhões de pessoas na República Democrática do Congo. A situação da justiça e as condições de vida nas prisões do país são gravíssimas.


Paz, desenvolvimento, direitos humanos

Há quase dezesseis anos de distância, Romeo Dallaire finalmente contou sua versão a respeito dos fatos, em um livro publicado em outubro de 2003 (Shake Hands With the Devil, Random House, 500 págs). Na conclusão de sua obra, o autor afirma ter repensado sobre o ódio que devastou Ruanda; sobre os milicianos que guerrearam no Congo e sobre a violência terrorista, que é a base dos ataques suicidas, tanto em Manhattan como em Israel.

Segundo o general, este ódio deve ser erradicado e isso só pode acontecer de um único modo: trabalhando contra a pobreza, na defesa dos direitos humanos, fazendo com que – para usar suas palavras – como o século 20 foi o século dos genocídios, seja o século 21 o século da humanidade.

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