terça-feira, 5 de outubro de 2010

Zé Limeira - Biografia



"Escrotidão" poética, pornografia versada, distorções históricas poético-delirantes e prenhes de pseudo-nonsense, métrica ilibada, voz trovejante de bardo nordestino, anéis por todos os dedos, poesia pra todos os lados. Seus trajes aberrantes, sua viola, seu matulão pendurado. Esse aí não é ninguém não, é Zé Limeira, o mais mitológico dentre todos os repentistas surgidos no Brasil. Tem gente que até hoje acha que ele nunca existiu. “Vai ver foi um personagem criado pela cabeça fantasiosa de outros repentistas”, diriam os incautos.

O compêndio poético de sua obra só chegou ao conhecimento das novas gerações graças ao abnegado trabalho de pesquisa realizado pelo advogado e escritor Orlando Tejo, que resultou no livro "Zé Limeira, poeta do absurdo". Os dois se conheceram em 1950 e o encontro entre narrador e narrado é assim descrito pelo primeiro: “Foi numa nublada tarde de sábado que ouvi pela primeira vez José Limeira. Cantava em sombrio casarão da Rua Manuel Pereira de Araújo, movimentado centro do baixo meretrício, em Campina Grande. Chamou-me a atenção a dimensão do óculo (sic) exageradamente escuro que, havia 20 anos, inspirara este espirituoso repente de Severino Pinto:

"Nestes dias vou fazer
Como o nosso Zé Limeira:
Comprar uns óculos escuros
Desses de tolda de feira
Botar o bicho na cara,
Sair cantando besteira"

Alcunhado de poeta do absurdo pelas suas construções poéticas verborrágicas e pelos neologismos mais esdrúxulos como pilogamia, filanlumia e filosomia, este paraibano de Teixeira cultivou um surrealismo assertanejado e altamente psicodélico, como confirmam estes versos:

Casemo no ano de 15
Na seca de 23
A mulher era donzela
Viúva de sete mês
Mais não me alembro que tenha
Um dia ficado prenha,
Estado de gravidez.

Discípulos homenageiam o anômalo do verso

Seu legado ainda sobrevive no contexto da música brasileira, devido ao registro de sua faixa Martelo Alagoano, gravada por Lula Côrtes e Zé Ramalho no LP "Nordeste, Cordel, Repente e Canção", coletânea de repentes com vários poetas populares lançada pela Tapecar, em 1975.

Outra homenagem de Ramalho viria anos mais tarde com a faixa Visões de Zé Limeira sobre o final do século XX do seu LP, "Força Verde”, de 82. O Quinteto Violado também o citaria, na contracapa de seu LP "Pilogamia do Baião", de 1978. A mais recente homenagem viria do grupo oriundo da cena mangue beat do Recife, Mestre Ambrósio que emplacou um hit sobre o mote pop "Se Zé Limeira sambasse maracatu".

Uma décima cantada aqui, um mourão alí, mais um martelo alagoano registrado pela pena de um padre acolá , Orlando Tejo foi catando no fecundo campo da tradição oral o legado de Zé Limeira. Analfabeto de pai e mãe e iniciado no cristianismo como a maioria dos sertanejos, Limeira forjou seu catolicismo místico e bárbaro de porralouca, distorcendo os enredos bíblicos em sua mente decolante. No poético tacho de Limeira, os mitos do Nordeste, da política nacional, ou mesmo o dono da casa são todos cozinhados na sua borbulhante cachola.

Na construção dos repentes os poetas em geral se utilizam de um recurso muito comum que é o sacríficio da coerência discursiva em prol da métrica, mola mestra da poesia popular nordestina. Inventam palavras e expressões para que a estrofe acabe rimando no final. Limeira é diferente. Como legítima expressâo da barbárie vernácula, o caboclo já saia cuspindo seus disparates do primeiro ao último verso. As sílabas , escravas submissas do seu bordão, não tinham direito a tonicidade. Oxítonas, paroxítonas e proparoxítonas sempre foram idéias bambas. Se algum dia ouviu estas palavras, provavelmente perguntiou: “é algum tipo de verme que eu não conheço ?”

Virgem Maria com o jegue, São Miguel e vacas mansas, cachorras viciadas, padres passados pra trás pela “pimba do índio”, não havia esse que não penasse na picardia lírica do trovador de Teixeira.

Limeira e o Alcorão

As influências do imaginário mouro-ibérico aparecem de relance pela obra de Limeira. O seu imaginário escancarado de passeante das eras, que viria depois influenciar um certo roqueiro que nasceu há dez mil anos atrás, cita Ferrabrás, - príncipe cavaleiro de Alexandria e que fez andanças pela Península Ibérica árabe - e passeia pela mitologia grega e brasileira .

Dezenove de março de 1953, equinócio de outono, data sagrada para os bruxos e disfarçada pela Igreja Católica como dia de São José. Para o sertanejo é mais lembrada como o dia de plantar o milho. Limeira entretanto tinha sido convidado pelo seu amigo e repentista Antônio Barbosa para uma refrega poética na Fazenda Paraíso, região do Vale do Cariri paraibano.

A festa começou cedo. Lá pras tantas da noite, os ponteiros cruzados no 12, a peleja é interrompida pelo dono da festa Severino Ramos

- Cante o romance, pediu o anfitriâo.
- Que romance? , estranhou o poeta
- O romance da Pavôa Devoradora, que você só cantava depois da meia noite, lá no sítio Tauá, porque se cantasse antes dessa hora dessa hora se dava uma desgraça na redondeza.

“A Pavoa Devoradora” só podia ser cantada de olhos fechados e sempre depois da meia noite para que nada de mal ocorresse.

Zé Limeira explica que foi por causa da ave que se deu o dilúvio, a existência dos vulcões e maremotos. Após a insistência dos presentes rezou uma sextilha a Padre Cícero e começou sua cantilena, descrita por seu biógrafo “mais lúgubre do que o corvo, de Alan Poe”. Na temática, pestes e pragas decorridas ao longo da história, epidemias, genocídios e toda classe de desgraça que já assolou o mundo. Ao final do romance – durou 90 minutos o recital - um aguaceiro despencou no esturricado Cariri, com toda a força da natureza. Raios riscavam o firmamento lapiando as pedras enquanto trovões ecoavam pelos ares. “Bico de 36 léguas/ a vomitar fogo e sangue”. Houve quem gritasse: “Zé Limeira veio anunciar o fim do mundo”.

Pornofonia em recital à primeira dama

Por ocasião de um banquete promovido por um governo estadual, na década de 50, apareceu por lá Zé Limeira, com sua bengala de aroeira, 15 anéis nos dedos, viola nas costas e a língua ferina, como sempre, a ponto de bala. Como reza a praxe da cantoria, fez a saudação à anfitriã da festa. Primeiro seu parceiro , com todo a delicadeza que se faz conveniente. Na bucha o Limeira soltou das suas:

Doutô, como eu não tenho um brinde em nota
Que possa oferecer a sua esposa
Dou-lhe um quilo de merda de raposa
Numa casca de cana piojota.

Sobre o primeiro governador geral Thomé de Sousa o boca-porca soltou:

O velho Tomé de Sousa
Governador da Bahia
Casou-se no mesmo dia
Ele fez que nem raposa
Cumeu na frente e atrás,
Chegou na beira do cais
Onde o navio trefega
Cumeu o padre Nobréga
Os tempos não voltam mais.

A cidade onde nasceu , Teixeira, foi o principal reduto de repentistas no século XIX e onde, segundo Tejo, a viola teria sido usada pela primeira como instrumento de cantoria lá pelos idos de 1840. Vivente até o ano de 1954, não há registro de sua voz. Fitas de pesquisadores que gravaram algumas de suas pelejas sumiram ou se deterioraram.

Posso morrer esse ano mas ano que vem eu tô vivo
Se existe um poeta na música brasileira que inovou em estilo e soube captar caoticamente todas as referências históricas e míticas do sertão estwe alguém foi Zé Limeira. Seus versos estrambóticos, cuspidos na brasa das pelejas discursivas de viola até hoje encantam os que tem conhecimento. As cancelas escancaradas do inconsciente coletivo refletido em tinturas áridas agrediam a realidade.

Ao lado dos irmãos Lourival, Dimas e Otacílio Batista, José Alves Sobrinho e outros, o poeta paraibano formou a fina flor do repente.

O poeta nordestino Venâncio de certa feita recitou:

“Se eu pudesse ao cantador
dava um grande prazer
mandava matar a morte
pro cantador não morrer”.

Mas não jeito: a morte chamou Zé Limeira pra prestar contas no firmamento. Pra quem ficou até agora esperando pra saber como se deu o acerto de contas entre o maior dos repentistas com Dona Morte, eis aqui a história , com base nos escritos de Tejo.

Depois de peregrinações pelas Alagoas, Pernambuco, Ceará e Paraíba, o velho poeta sentiu vontade de voltar para casa, o coração apertou de saudade do sítio Tauá, na serra do Teixeira. Saudades de Dona Bela, sua esposa e de suas filhas. Uma bela noitinha chegou no Tauá, seu rincão, santuário onde descansava..

Mal chegou em casa, chega o seu compadre Chico Pedro já o chamando para o aniversário de um fazendeiro. O cantador alagoano Bentevi já estava por lá faltando apenas outro para se completar a parelha. Limeira diz que não vai, a noite seria de Dona Bela, mas se a festa for transferida pro terreiro dele, não rejeitaria peleja . “Pra dar nesse nego véio tem que ter foigo de 7 gatos”, costumava dizer.

Mais tarde chegam as pessoas que estavam no outro sítio , com bancos e demais apetrechos. A festa ia ser mesmo no pátio dos Limeira. Inicia-se a peleja entre Bentevi e o dono da casa. Após as saudações iniciais onde são feitas as dedicatórias e homenagens iniciais, o primeiro intervalo para lubrificar a goela.

Na retomada da cantoria uma comadre lhe pede que entoe “O Romance da Pavoa Devoradora”. Limeira explica que só pode cantar depois da meia-noite sob pena de cantar antes e morrer. A audiência insiste e Limeira, quebrando o preceito diz que vai cantar. As filhas e a esposa tentam demovê-lo. É inútil. Palavra de sertanejo dada, mesmo que morresse, partiria feliz, alimentada sua honra caprichosa.

Após solicitar um silêncio total, fere as doze cordas de sua viola e declama as sinistras e pestilentas estrofes do poema. Com as superstições provocadas pela corda de tragédias que assolaram a humanidade, descritas no poema, alguns ouvintes saem do terreiro e Limeira vai desfiando o rosário lúgubre do romance.

Assim que termina a cantoria, põe sua viola sobre uma cadeira. O instrumento cai. Sua mulher estranha. Segundo ele, a razão teria sido o fato de não rezar para o padre Cícero antes de recitar “A Pavoa”. Dona Bela nota a mudança no semblante do vate. Logo em seguida, ânimos revigorados, os dois poetas se engalfinharam em inspirada peleja. Lá pelas três horas da manhã, era festa de Natal, os dois cavalgando no lombo da poesia em galope a beira-mar, Limeira é fulminado. Vai ao chão com viola e tudo e assim sai da vida para entrar na história o proto-tropicalista e surreal poeta.

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