PASTORIL PROFANO
É fato comprovado pela grande maioria dos estudiosos que se dedicam às pesquisas em torno das manifestações que expressam, em sua dramaticidade, o povo brasileiro, a falta de elementos profanos nas suas origens, principalmente, as nossas danças dramáticas. Lembramos, por exemplo, Gilberto Freyre e Mário de Andrade, quando são unânimes em afirmarem a origem religiosa das manifestações artísticas populares, mesmo que tenham suas bases ou alimento em fatores econômicos, mas se considerarmos o sentimento religioso como permanente e solúvel, sua afirmação se dá pela mística religiosa , justificando-se através do mistério qualquer variante de algum fenômeno vital.
Outra característica importante salientada por Mário de Andrade em "Danças Dramáticas do Brasil: na maioria dos nossos folguedos encontramos a morte e ressurreição da entidade principal ou como nos Pastoris e Cheganças, a luta do bem contra o mal, caracterizando a noção de perigo e salvação". É claro, entretanto, que nos Pastoris, originários da Península Ibérica, o conceito de morte e ressurreição não aparece de forma contundente mas há no chamado Pastoril profano, a "luta" entre o cordão azul e o encarnado, revelando um confronto se considerarmos o cordão encarnado como o mais audaz, atrevido, por assim dizer, do que as pastoras do cordão azul. De qualquer forma foi a finalidade religiosa que deu a essas danças dramáticas ou bailados, como diz ainda Mário de Andrade, "a sua origem primeira e interessada, a sua razão de ser psicológica e a sua tradicionalização".
Faz-se necessário frisar que o caráter religioso dessas manifestações, desses autos, está cheio de teatralidade - o teatro nasce com o culto ao deus grego Dioniso - porém "são os elementos sociais profanos que vão pouco a pouco tomando importância desmesurada, que destrói a finalidade religiosa primitiva do teatro. E esses elementos profanos acabam imperando sozinhos", como ressalta Mário de Andrade. Esse fenômeno aconteceu com a tragédia grega, com o teatro Nô japonês, com os Mistérios Medievais e com as nossas danças dramáticas.
Não é demais também verificar que todos os nossos bailados possuem entrecho dramático, mesmo sendo texto improvisado - músicas e danças próprias revelando, por fim, as três bases étnicas que dão origem ao povo brasileiro: ameríndia, portuguesa e africana.
ORIGEM
A origem do Pastoril está também vinculada àquele teatro religioso semi-popular ibérico, já que tanto na Espanha quanto em Portugal, as datas católicas se transformaram em festas eclesiásticas e ao mesmo tempo em festa popular.
Segundo diversos autores, desde tempos muito antigos até o final do século XVI, são representadas peças de um ato relativas ao Natal, Reis, Páscoa, etc., numa mistura de elementos pastorais e alegóricos, de bailados, textos e canções. Esse teatro popular se afirmou em Portugal com os vilhancicos galego-portugueses, fonte primeira dos nossos pastoris. Os vilhancicos eram cantigas a solo e refrão coral, cantadas por populares encarnando pastores, nas representações da Natividade.
O Pastoril, mesmo em suas origens, nunca foi inteiramente popular mas burguês e sua justificativa se dá com os Presépios, pois, sistematicamente, os pastoris eram dançados em frente da lapinha, representação estática do nascimento do menino Jesus.
Com poucas diferenças, os estudiosos afirmam que as comemorações do Natal, a festa da Natividade, surgiram no início do século X. Conforme comprovam as pesquisas de Mário de Andrade , "a idéia de comemorar o nascimento do Cristo, através de representações dramáticas, foi do monge Tuotilo, morto em abril de 915, na Abadia de São Galo, centro germânico onde nasceram, ou donde pelo menos se espalharam com maior autoridade as Seqüências e os Tropos". O Tropo consistia em intercalar textos novos e frases melódicas novas, em textos religiosos oficiais da Igreja, cantados em gregoriano.
Logo, tanto na França como na Inglaterra, os tropos dialogados do natal se desenvolveram rapidamente, transformando-se em núcleos do drama litúrgico medieval. Dividiam-se em três partes principais: A anunciação do nascimento do Cristo aos pastores; a adoração dos três reis magos; o massacre dos inocentes. Os dois primeiros temas se conservaram vivos e se desenvolveram com rapidez por todo o ocidente europeu e Portugal, através dos jesuítas, que assim repassaram para o Brasil Colônia.
PRESÉPIO
Quanto ao Presépio, diante do qual tradicionalmente eram dançados os pastoris, segundo alguns estudiosos, surgiu somente no século XIII, com o movimento religioso de Úmbria. A invenção do presepe ou presépio é atribuída a São Francisco de Assis. Por volta de 1510, o tema passou a figurar nos autos hieráticos, como o de Sybilla Cassandra, de Gil Vicente, em citação de Pereira da Costa. Já em Portugal, a representação de auto pastoril ou presépio se afirmou somente no final do século XVIII, como descreve Mário de Andrade, citando Pedro Fernandes Tomás: "Os Auto Pastoris ou o Presepe como eram conhecidas entre o povo estas composições teatrais que se exibiam em muitas localidades do país durante as festas do Natal, Ano Bom e Reis, constituíram uma série de pequenos autos e entre meses, representados na maioria dos casos em palcos improvisados, cujo cenário se revestia da maior simplicidade, formado quase sempre por grandes ramos de árvores (pinheiro, loureiro, etc.) colocados ao longo das paredes do palco. Ao fundo da cena via-se a gruta ou lapinha tradicional com as figuras da Virgem tendo no regaço o divino infante, S. José completando o grupo. Via-se também a manjedoura e os animais simbólicos- a vaca e a mula, e a burrinha em que a Virgem havia feito a viagem de Nazaré a Belém. Uma cortina cobria a gruta ou Presepe, e todas as ingênuas cenas dos autos e entre meses terminavam por se descerrar a cortina, e os personagens caírem de joelhos adorando o Menino... As farsas mais em voga que entremeavam os Autos Pastoris eram as do Cego e Moço, o Frade e a Beata, a Lambisqueira, etc. Uma espécie de prólogo em que entravam a Noite, a Lua, o Sol, a Atenção e outras entidades simbólicas, precedia a representação. No Auto dos Reis Magos também aparecia Herodes, rei da Judéia, que ordenava o extermínio dos Inocentes, indiferente às súplicas da desolada Raquel... Estas composições parecem datar do século XVIII, e conservam-se na sua grande parte manuscritas".
No Brasil e mais precisamente em Pernambuco, segundo Pereira da Costa, o aparecimento do presépio vem, talvez, dos fins do século XVI, no Convento dos Franciscanos em Olinda, por iniciativa de Frei Gaspar de Santo Antônio, primeiro religioso a receber hábito no Brasil. Já Fernão Cardim, o Jesuíta, nos dá uma indicação em que talvez possamos detectar as origens do Pastoril brasileiro, por conta de uma representação em 1584, no dia 5 de janeiro ou no dia dos Reis, como consta num documento, também citado por Mário de Andrade em Danças Dramáticas do Brasil - 1º Tomo: "Debaixo da ramada se representou pelos índios um diálogo pastoril, em língua brasílica, portuguesa e castelhana, e têm eles muita graça em falar línguas peregrinas, maximé a castelhana. Houve boa música de vozes, flauta, danças, e dali em procissão fomos até a igreja com várias invenções".
O PASTORIL EM PERNAMBUCO
É curioso observar que nos séculos XVII e XVIII, os estudiosos não encontram referências importantes sobre o pastoril na Colônia, mas já no século XIX, concordam que houve abundância dos bailes pastoris, principalmente no Nordeste e notadamente, em Pernambuco e na Bahia, com publicações de textos, a exemplo de Sylvio Romero e Pereira da Costa.
Para Mário de Andrade, é curioso observar que essa dança dramática não teve uma repercussão nacional (apenas no período oitocentista o pastoril teve seu brilho e apogeu), diferente dos presépios que se tornaram tradição em todo o país, talvez, como ele afirma, por ser um fenômeno de imposição burguesa. Assim no Recife e nas outras cidades do Nordeste, em frente aos presépios ou lapinhas, as pastoras cantavam loas, tornando o presépio não só forma animada, mas dramática, ao lado da representação estática da Natividade. Fica evidente que a dramatização do tema permitia uma fácil compreensão em torno do episódio do nascimento do Cristo. Desta forma, a cena tomava vida, com a introdução de recursos visuais e sonoros. Para Hermilo Borba Filho, essa dramatização traz a influência do auto sacramental espanhol, na sua forma literária.
PROFANO- RELIGIOSO
Ao enveredar por outros caminhos, o Auto Pastoril transforma-se em sincretismo profano-religioso, tornando-se, muitas vezes, em profano, com suas características que ressaltam a licenciosidade do Velho do Pastoril e a sensualidade das Pastoras.
No Recife, por volta de 1840, começaram a aparecer sociedades com o fim de dirigir com solenidade, brilhantismo e decência o natalício do Messias, por meio de representações teatrais, tais como a Sociedade Natalense e a Sociedade Nova Pastoril, conforme registra Pereira da Costa. Com a formação dessas sociedades, os pastoris passaram a ter uma forma literária, de modo que transformavam-se em espetáculos, contando com poetas, escritores e artistas que criavam letras e músicas. Dentre tantos que contribuíram nesse período, há que se destacar os irmãos Valença - João e Raul que apresentavam, quase todos os anos, um Presépio, assemelhado com os autos hieráticos oitocentistas. Ascenso Ferreira revela que, no Recife, o avô de João e Raul Valença encenou, pela primeira vez, um Presépio em 1865, no auge da Guerra do Paraguai. A tradição foi mantida até 1900 pelo pai dos dois irmãos compositores já citados, que após alguns anos de interrupção, assumiram a volta ao tablado do Presépio, no Sítio Valença, localizado entre a Madalena e o Zumbi, com as mesmas características de auto sacramental. Os personagens utilizados pelos irmãos Valença eram: Culpa, Libertina, Religião, Graça, Gabriel, Pastoras, Lusbel, Mestra, Diana, Contramestra, Eva, Argemiro, Monge, Flora, Herodes, Centurião e Cingo.
Fica claro também que, enquanto as sociedades tentavam manter um controle moral e religioso, evitando enxertos de cenas burlescas e licenciosas, os Pastoris ditos profanos abundavam nas pontas de ruas, alterados em suas formas originais, contando com a participação dos espectadores na animação das cenas, fugindo do enredo e da temática e, como diziam os mais arredios, irreverentes, licenciosos e imorais.
Os esforços das sociedades para manterem a seriedade do ato sagrado que se pretendia reproduzir, repercutia também na imprensa: os jornais da época censuravam o ar indecente de que se revestiam certos presépios, com opiniões que indicavam que a Polícia devia impedir as apresentações, no zelo pela moral pública e pelos bons costumes. Há registros, de 1840, dessas denúncias, por exemplo, no jornal O Carapuceiro, do Frei Miguel do Sacramento Lopes Gama, conhecido como o Padre Carapuceiro e por suas críticas de costumes na primeira metade do século XIX.
É certo que o Pastoril teve seu grande momento nos primeiros vinte e cinco anos desse século, sendo representado por iniciativa de leigos mas sem perder sua ligação com festas religiosas, principalmente, como já foi dito, do Ciclo Natalino. Por outro lado, os Presépios sempre foram encenados por jovens e meninas de família, que paramentadas de pastoras angariavam prendas, como flores, bolos, perfumes, frutas, que se transformavam em prêmios dos leilões realizados em benefícios de instituições religiosas ou obras de caridade.
A partir de então os pastoris se espalharam pelos bairros atraindo sempre um público certo e participativo e, evidentemente que, com mais licenciosidade, atraíam os homens. Dentro da estrutura do auto, as pastoras com seus pandeiros ou maracás, cantam e dançam ao som da orquestra de pau e corda mas sua formação dependia dos recursos financeiros do grupo. Algumas traziam pistão, trombone, clarinete, bombo. Outras se apresentavam com violões, cavaquinhos, com um instrumento de sopro solista.
No meio dos dois cordões, cada um comandado pela Mestra (cordão azul) e Contramestra (cordão encarnado), encontramos a Diana, vestida metade azul, metade encarnado. O Velho, conhecido como Bedegueba, mas que toma diversos apelidos é uma espécie de bufão, de palhaço de circo, que comanda as jornadas (cantos das pastoras) e se esparrama em piadas, numa atuação que ressalta o histrionismo, a improvisação. Seus diálogos com as pastoras são cheios de duplo sentido e, com o público, puxa discussão, brincadeiras, faz trejeitos e canta canções adaptadas às suas necessidades.Dentre os outros personagens do pastoril profano, também desfilavam o Anjo a Estrela do Norte, o Cruzeiro do Sul, a Cigana, além de outras figuras que aparecem ocasionalmente por influência do local, da região.
Hoje o pastoril perdeu em sentido hierático e lírico, mas transformou-se num gênero popular de representação, diferenciado e que atingiu sua própria forma. Não é questão de involução mas de interferência dos artistas populares que com os seus espíritos inquietos e brincantes conduzem esses folguedos.
O AUTO
O auto conta a história das pastoras a caminho de Belém, onde nasceu Jesus. Lusbel lança mão de muitas artimanhas para desviá-las do caminho e só não consegue o seu intento graças às interferências de São Gabriel. Frustrado, Satanás convence Herodes a promover a degola dos inocentes, mas este é castigado porque os soldados matam o seu filho. Herodes se arrepende e é salvo, enquanto o Demônio é mais uma vez derrotado.
O auto é escrito em versos e musicado, com um prólogo, dois atos e um epílogo. As características são as mesmas de um auto sacramental, como já foi dito anteriormente. A comicidade, uma das características mais fortes dos espetáculos populares do Nordeste, aos poucos também foi aparecendo no Pastoril. Talvez para atrair um maior público e deixando os autores com mais liberdade de criação, como disse Hermilo Borba Filho. Com as pastoras divididas em dois cordões, azul e encarnado, possibilitou a formação de partidos que se batiam pelas cores de suas preferências e muitas vezes terminava em pancadaria. O leilão também despertava entusiasmo e quando o pastoril saiu do amadorismo para um certo profissionalismo acentuou-se a sensualidade e sexualidade e era comum um pastoril terminar com o rapto da Mestra, Contramestra ou da Diana.
AS JORNADAS
Nos presépios que mantém vinculação à tradição natalina, encontramos nas jornadas fortes alusões ao nascimento de Jesus:
Da cepa nasceu a rama
Da rama nasceu a flor,
E da flor nasceu Maria
Mãe de Nosso Senhor.
ou ainda nas jornadas finais, que fazem parte da chamada queima da lapinha, ressalta-se também, o aspecto hierático da canção, quando as pastoras cantam:
Vamos companheiras, vamos,
Vamos a Belém,
Para queimar as palhinhas
Onde nasceu nosso bem.
A queima da lapinha acontecia, quase sempre no Dia de Reis, quando as famílias recebiam convidados para na hora tradicional - meia noite - levarem toda a folhagem seca que ornamentava a lapinha para ser queimada na porta da Igreja. Os participantes faziam uma roda e girando em volta do fogo cantavam a jornada própria :
A nossa lapinha
Já vai se queimar
E nós, pastorinhas,
Devemos chorar.
Queimemos, queimemos,
A nossa lapinha,
De cravos, de rosas,
De belas florinhas
Queimemos, queimemos,
Gentis pastorinhas,
As secas palhinhas,
Da nossa lapinha...
Era o momento de jogar os pedidos dirigidos ao Menino Jesus, escritos anteriormente. Em seguida todos voltavam para casa, onde os esperava uma mesa farta e a brincadeira continuava.
Já no pastoril dito profano, só as jornadas iniciais e finais referem-se ao nascimento de Jesus. Mas nem sempre. Dentre as inúmeras versões das jornadas de aberturas, ainda hoje são cantadas assim:
Boa noite, meus senhores todos
Boa noite, senhoras também;
Somos pastoras
Pastorinhas belas
Que alegremente
Vamos a Belém.
Sou a Mestra
Do Cordão encarnado
O meu cordão
Eu sei dominar
Eu peço palmas
Peço riso e flores
Ao partidário
Eu peço proteção.
Sou a contramestra
Do cordão azul
O meu partido
Eu sei dominar
Com minhas danças
Minhas cantorias
Senhores todos
Queiram desculpar
A Diana, enquanto mediadora, cantava:
Sou a Diana, não tenho partido
O meu partido são os dois cordões,
Eu peço palmas, fitas e flores
Ó meus senhores, sua proteção.
É importante salientar que as canções dançadas sucediam-se uma após a outra, sem qualquer diálogo ou texto de ligação entre eles, a não ser quando o velho do pastoril interferia com suas improvisações para estimular o público e receber gorjetas para lançar, com deboche, suas irreverências.
Como espetáculo popular, o pastoril perdeu muito de sua popularidade, e hoje encontramos poucos grupos que ainda animam os bairros nos tablados armados na praça, ou como dizem: "não há mais pastoril de ponta-de-rua", com sua alegria irreverente. E naturalmente, perdeu sua função social. E perdemos verdadeiros atores mambembes, sendo justo lembrar os grandes velhos de pastoris, tais como: Amaro Canela de Aço, Catota, Galo Velho, Cebola, Baú, Velho Barroso, Futrica e o Faceta.
Mas, ainda que os fenômenos econômicos e sociais tenham interferido para a decadência dos pastoris, é bom lembrar a resistência do Velho Xaveco e Suas Pastoras, lançando discos e realizando espetáculos em teatros ou a recriação do ator Walmir Chagas, com o seu Velho Mangaba.
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